A perspectiva vem de uma figura notável. O historiador Luiz Felipe de Alencastro, de Santa Catarina, ganhou reconhecimento como um astuto analista político durante a ditadura militar no Brasil. Sua reputação se consolidou tanto na historiografia do período escravocrata quanto na análise da política contemporânea.
Ele considera que a relação entre o governo Lula e os militares tem sido caracterizada por uma postura de adiamento e gestão provisória dos conflitos. No entanto, Alencastro acredita que a situação tende a se estabilizar à medida que os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 se tornem menos presentes na memória coletiva.
Alguns dos textos mais influentes de Luiz Felipe de Alencastro ainda não haviam sido publicados em português. Escrito durante seu exílio na França, onde viveu por mais de vinte anos, seu trabalho foi originalmente publicado no jornal progressista Le Monde Diplomatique.
Ele comenta: "É a visão de alguém que observava a evolução política do Brasil de fora, mas eu não estava isolado", brinca o historiador de 78 anos, que continua ativo na Fundação Getulio Vargas após lecionar em instituições como a Sorbonne e a Unicamp. Alencastro estava em constante diálogo com os debates brasileiros, o que fica evidente nos artigos agora compilados em "Despotismo Tropical", publicado pela Tinta-da-China.
Sobre o critério de publicação, ele explica: "Não fui eu quem decidiu se os textos eram bons ou atuais. Assumi o risco porque vi uma chance de revisitar a ditadura", afirma, referindo-se ao livro organizado pelo pesquisador Rodrigo Bonciani e pelo editor Paulo Werneck. Alencastro enfatiza que sua geração, a última a ter convivido, lutado e amado os mortos e desaparecidos, tem a responsabilidade moral de mantê-los na memória coletiva.
Alencastro analisa criticamente a decisão de Lula de evitar atos governamentais na comemoração dos 60 anos do golpe militar em março passado. Este será, inclusive, o tema que ele abordará com veemência em um debate neste sábado à noite, ao lado do escritor Marcelo Rubens Paiva e da jornalista Patrícia Campos Mello, na Feira do Livro em São Paulo.
Apesar de sua crítica, Alencastro faz algumas ponderações. Ele destaca que, pela primeira vez, militares têm sido presos e condenados, e que Lula reativou a Comissão dos Mortos e Desaparecidos, que havia sido desmantelada durante o governo de Jair Bolsonaro. Isso representa um avanço significativo, mesmo com a ausência de manifestações oficiais no aniversário do golpe.
Isso seria uma tentativa de acalmar as Forças Armadas, que ficaram agitadas durante o governo Bolsonaro. Alencastro menciona que os militares envolvidos no governo Bolsonaro eram aqueles que Geisel havia colocado nos porões da ditadura. A situação atingiu um ponto crítico com a tentativa de golpe no início do atual governo de Lula.
Muitos membros do governo se opuseram à orientação de não realizar atos oficiais. Alencastro relata que ele próprio participou de uma marcha em memória dos mortos e desaparecidos, que saiu do antigo prédio do DOI-Codi em São Paulo e foi até o Ibirapuera. Durante essa marcha, Nilmário Miranda, secretário especial do Ministério dos Direitos Humanos sob Silvio Almeida, expressou livremente suas opiniões.
Alencastro destaca que os dois ministros mais importantes do terceiro governo Lula são Fernando Haddad, da Fazenda, e José Múcio Monteiro, da Defesa. Ele sugere que, à medida que o tempo passa desde o episódio de 8 de janeiro, o governo está gradualmente retomando o controle da situação.
A ditadura militar deixou marcas profundas na vida de Alencastro, visíveis em toda a sua trajetória, desde quando foi detido e fichado na juventude até sua atuação mais recente na Comissão Arns. Esses sinais estão presentes até na capa do novo livro, que anuncia as "crônicas de Julia Juruna".
Esse foi o pseudônimo escolhido por Alencastro para assinar seus artigos no Le Monde durante anos, evitando exposição que pudesse prejudicar a renovação de seu passaporte europeu. Nem seus amigos mais próximos sabiam que "a autora" era ele. A escolha de um nome feminino foi uma estratégia para despistar, considerando que a intelectualidade ainda tão masculina da época poderia imaginar que um homem "podia abdicar do seu nome de família", mas não do gênero.
Da redação Ponto Notícias