Desde 2018, atos de importunação sexual são considerados crimes no Brasil, com penas que variam de um a cinco anos de prisão. Desde então, o número de casos registrados na capital do país tem aumentado. Entre 2019 e 2023, houve um crescimento de 116% nas denúncias. No ano passado, 13,5% dos casos ocorreram em transportes públicos ou privados, incluindo ônibus, metrô, e veículos por aplicativo. Além disso, 14,4% desses crimes ocorreram em locais públicos ou isolados. O Correio ouviu relatos de mulheres que passaram por essa violência no Distrito Federal, revelando que nenhuma delas denunciou os abusos, sugerindo que o número real de ocorrências pode ser significativamente maior do que o registrado pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF).
Uma mulher prefere viajar em pé no ônibus, pois acredita ser mais fácil ser importunada quando está sentada. Ela relata que em um dia em que decidiu se sentar por estar cansada, foi vítima de importunação sexual. Um homem ao seu lado a olhava de maneira incômoda e começou a mexer em suas partes íntimas. Assustada, ela se levantou e completou o trajeto de pé, evitando denunciar o incidente por não querer reviver a experiência traumática.
Mayla Santos, advogada especializada em violência doméstica e direito processual civil, observa que a cultura do estupro e o machismo permitem que homens se sintam à vontade para importunar mulheres em espaços públicos ou privados. Ela afirma que homens com visões conservadoras sobre o papel de gênero são mais propensos a cometer assédio e resistem às campanhas educativas contra essa prática. Santos destaca um estudo da ONU Mulheres que revela que muitos homens veem o assédio como uma forma aceitável de demonstrar interesse, o que ela considera inaceitável e um sinal de que a sociedade ainda precisa evoluir muito.
Deise* utiliza o metrô diariamente, viajando da Rodoviária do Plano Piloto até Ceilândia, onde mora. Ela sempre opta pelo vagão exclusivo para mulheres, mas frequentemente observa a presença de homens no espaço reservado. Deise relata que as mulheres pedem para que eles saiam, mas são ignoradas. Ela recorda um episódio em que um homem de cabelos compridos entrou disfarçadamente no vagão exclusivo e sentou-se ao lado de uma menina. Ninguém notou a presença dele até que a menina desceu chorando na mesma estação que Deise, revelando que ele havia a assediado.
A Companhia do Metropolitano do Distrito Federal (Metrô-DF) afirma que, ao receber uma denúncia, os agentes das estações ou do Corpo de Segurança Operacional acolhem a vítima e conduzem as partes à delegacia para registro da ocorrência. A companhia realiza campanhas internas de conscientização e treinamento dos colaboradores para melhorar o acolhimento e proteção das vítimas, além de coletar informações e encaminhar as partes para as autoridades policiais competentes.
A advogada Mayla Santos esclarece que a lei que estabelece vagões exclusivos para mulheres tem como objetivo prevenir assédio e outras agressões físicas e morais contra elas. Contudo, homens ainda desrespeitam essas regras e as leis de proteção feminina. Mayla enfatiza que os homens precisam compreender que, embora os espaços sejam públicos, o corpo das mulheres não é.
O Metrô-DF firmou um acordo de cooperação técnica com a antiga Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos e a Polícia Civil (PCDF). Através da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), foram oferecidos esclarecimentos e conscientização aos funcionários do Corpo de Segurança Operacional. Palestras e cursos foram realizados para aprimorar o atendimento e acolhimento das vítimas de importunação sexual e outros crimes relacionados.
Em 2023, 65% dos casos de importunação sexual em transportes públicos ocorreram dentro de ônibus. Tamires* foi uma das vítimas desse crime enquanto fazia seu trajeto diário do Setor Bancário Norte para Taguatinga. Ela estava sentada e, ao levantar-se próximo à sua parada, um homem se posicionou atrás dela e encostou suas partes íntimas em seu corpo por alguns minutos. Tamires ficou paralisada e não reagiu, sentindo-se culpada posteriormente por sua inação.
Sandra* também experimentou a sensação de culpa após sofrer importunação sexual no ônibus. Ela estava sentada ao lado de um assento vazio, quando um senhor de cerca de 60 anos se sentou ao seu lado e começou a se masturbar. Sandra gravou a cena com seu celular, mas mesmo assim o homem não parou. Ela levantou-se e completou a viagem em pé. Embora tivesse uma prova em vídeo, Sandra não registrou a ocorrência por sentir-se suja e envergonhada.
Segundo a Secretaria de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal (Semob-DF), campanhas são realizadas para conscientizar sobre o crime de importunação sexual. Essas ações são veiculadas nas redes sociais, nas TVs dos ônibus e nos totens da Rodoviária do Plano Piloto. A secretaria informa que, se o motorista ou cobrador identificarem ou forem informados sobre um caso de importunação sexual dentro do ônibus, o veículo pode ser conduzido até a delegacia mais próxima ou a viagem pode ser interrompida para que a Polícia Militar (PMDF) seja acionada. Os funcionários do transporte público são orientados sobre esses procedimentos por meio de cursos e palestras que a Semob recomenda às concessionárias.
O aumento das denúncias de importunação sexual nos transportes públicos do Distrito Federal reflete a persistência do machismo estrutural e do patriarcado na sociedade. Esse crescimento também está relacionado à maior conscientização das mulheres e à coragem de expor os abusos, apesar de muitas ainda se sentirem envergonhadas para denunciar.
Para as mulheres, compreender o que constitui violência é um exercício constante. Elas enfrentam diferentes formas de agressão ao longo da vida, muitas vezes sem perceber que são vítimas. Acredita-se que os homens se sentem autorizados a assediar mulheres no transporte público porque foram socializados a pensar que têm domínio sobre os corpos femininos.
A vulnerabilidade das mulheres aumenta a probabilidade de serem violadas. A crença de que podem invadir espaços femininos sem consequências é fortalecida pela impunidade e a falta de segurança. O anonimato e a falta de fiscalização efetiva contribuem para que os homens se sintam à vontade para assediar.
O poder público precisa investir em campanhas educativas permanentes, pois só a educação pode transformar a sociedade. É essencial um sistema de denúncia ágil e acessível, que não desencoraje as vítimas a denunciar. Além disso, é necessário aumentar a presença de agentes de segurança nas estações e nos transportes coletivos, e o sistema de denúncias precisa ser eficiente.
Uma mudança cultural profunda é necessária, começando pela educação básica. As crianças precisam aprender sobre violência com base no respeito aos corpos. A luta é diária, e as mulheres devem continuar exigindo seus direitos, sem se sentirem vulneráveis ao utilizar transporte público ou caminhar sozinhas nas ruas.
Treinamento
Para auxiliar bares, restaurantes, casas noturnas e de espetáculos na implementação de protocolos contra o assédio, o coletivo Não é Não! lançou um treinamento para instruir os estabelecimentos a aplicar o Protocolo Não é Não, instituído pela Lei nº 14.786/2023. As inscrições estão disponíveis no site naoenao.com.br. O treinamento, realizado de forma totalmente virtual, pode ser feito por qualquer estabelecimento comercial que queira garantir a segurança das mulheres, mesmo aqueles não obrigados pela lei. Os locais que concluírem o treinamento e estiverem aptos a aplicar o "Protocolo Não é Não" receberão o Selo Não é Não — Mulheres Seguras, concedido pelo Poder Público.
Onde pedir ajuda
Da redação Ponto Notícias l Com informação - Correio Brasiliense l Mila Ferreira.