O trote é um rito de passagem que tem sido combatido, mas continua presente nas mentes de vários alunos de instituições de ensino superior. Não querendo explicar tudo, mas, segundo o médico psicanalista francês, Christophe Dejours, o trote serve também para aplicar no outro o sofrimento que sente, numa tentativa de ser ativo e de ter poder sobre o sofrimento recebido.
Quanto maiores as contradições, incoerências e injustiças no curso universitário mais agressivo será o trote. “Quer estudar aqui? Então sinta na própria pele como é!”. A faculdade de Medicina é um ambiente muito hierárquico, agressivo e cheio de situações terríveis e intensas que não são elaboradas. Por isso, a questão do trote tem que levar em consideração o que ocorre com os veteranos ao longo do curso.
Nos contextos de trabalho temos também que considerar o sofrimento dos gestores assediadores. Eles aprenderam sofrendo assédio. Ao assediar pensam que estão fazendo o que os fez prosperar, afinal temos que ter resiliência.
O trote em verdade tem muito a ver como assédio no trabalho. A origem de ambos está no contexto e não no veterano ou no líder. Ambos são vítimas também do contexto adoecedor. Cuidar do contexto é mais importante que punir e treinar, mas tudo isso sem deixar de responsabilizar quem exacerba a conduto e provoca violência física ou moral.
Hoje em dia, há uma onda que defende que o problema do burnout (aquela síndrome ou distúrbio psíquico causado pela exaustão extrema, sempre relacionada ao trabalho) é o assédio. Mas na realidade, o assédio é que faz parte do burnout, e ele seguramente não é a causa!!!
O psicanalista Christophe Dejours interpreta o trote como um ritual de iniciação que, apesar de ser frequentemente banalizado e visto como uma forma de integração, pode ter efeitos psicológicos prejudiciais. Por esse olhar, os trotes não se limitam a atos isolados de humilhação, mas também refletem a cultura organizacional e a forma como a autoridade é implementada numa organização empresarial ou instituição universitária.
Dejours argumenta que este tipo de rito tem sido uma forma de reforçar a hierarquia e exercer o controle sobre os novos membros, muitas vezes impondo-lhes desafios humilhantes e situações de desconforto. Ele sustenta que o trote, assim como outras práticas negativas no ambiente de trabalho, está associado ao que ele denomina "sofrimento ético". Neste caso, o funcionário assediado sofre por estar inserido em um ambiente onde condutas antiéticas e desumanizantes são toleradas e perpetuadas.
No olhar do psicanalista, essa prática relacionada ao assédio moral tem efeitos perenes, e expõe os funcionários, especialmente os recém-chegados, a situações degradantes e a um ambiente que pode prejudicar sua autoestima e o bem-estar psíquico. Dejours sustenta que o combate às formas de assédio requer uma mudança na organização, ou seja, na forma de avaliar, reconhecer e engajar quem trabalha, enfatizando a importância do respeito e da ética no trato entre os funcionários e entre os funcionários e a sociedade.
No seu livro ‘Psicodinâmica do Trabalho: Casos Clínicos’, o médico psicanalista e psicodinamicista francês procura compreender o sofrimento no ambiente de trabalho e as patologias mentais ligadas a ele, mas também verificar aquelas situações em que o trabalho seja uma fonte de prazer. Assim sendo, a labuta pode também ser um agente na promoção da saúde mental se for ‘bem trabalhada’.
É importante ressaltar ainda que este estudo, que recorre à prática psicoterapêutica e psicanalítica, oferece uma nova óptica do padecer e do adoecimento, parte e corpo de nossa sociedade contemporânea. Aqui no Brasil, diversos profissionais de áreas distintas estão mergulhando na Psicodinâmica do Trabalho tão bem refinada por Christophe Dejours para refletir sobre as mudanças da organização onde atuam ocupacionalmente. Este campo do saber, no entanto, ainda é pouco reconhecido no País, na verdade.
Nossa inferência é que seria essencial melhorar os ambientes de trabalho, seus processos, suas regras, seus modelos de gestão, de avaliação e de incentivos, para torná-los mais saudáveis e valorizar a dimensão subjetiva do trabalho, o que vai seguramente auxiliar na sinergia entre as demandas da organização e o bem-estar dos colaboradores.
Por Dr. André Fusco é médico psicanalista graduado pela Universidade de São Paulo (USP). Como consultor tem atuado no suporte a empresas sobre a complexidade da saúde mental e o sofrimento emocional de seus colaboradores, objetivando a produção de resultados sustentáveis por meio de ambientes saudáveis.