No meio da aula magna para calouros do curso de Direito de uma
universidade paulista, o ministro Flávio Dino reconheceu que, de acordo
com a Constituição de 1988, o Legislativo legisla, o Executivo executa e
o Judiciário julga. Mas os tempos são outros, ressalvou o caçula do
Supremo Tribunal Federal. Ele vestiu a toga pela primeira vez em
fevereiro de 2024. Pouco mais de um ano. Tão curto período no Pretório
Excelso foi suficiente para elevá-lo à categoria dos doutores em tudo.
"O protagonismo do Poder Judiciário é uma marca do nosso tempo que
veio para ficar", comunicou Dino aos universitários recém-chegados.
"O Supremo está condenado a arbitrar temas políticos, econômicos e
sociais."
Militante comunista desde o berçário, deputado federal e governador do
Maranhão eleito pelo PCdoB, senador pelo PSB e ministro da Justiça do
governo Lula, ele fingiu que nunca ocupou cargos no Legislativo e no
Executivo, talvez para louvar sem remorso a entrega dos demais Poderes
aos doutores em tudo. "Se a política não resolve alguns problemas,
isso vai para algum lugar", foi em frente. Qual lugar? O Supremo,
claro. No momento, por exemplo, Dino cuida simultaneamente de pendências
e complicações que vão do mercado de trabalho no Brasil ao serviço
funerário em São Paulo, das queimadas na Amazônia às emendas
orçamentárias impositivas - sem deixar de manter sob estreita
vigilância a prioridade número 1: os desdobramentos do "golpe de
Estado" tramado por Jair Bolsonaro.
Desde março de 2019, quando os ministros Dias Toffoli e Alexandre de
Moraes plantaram no Pretório Excelso o inquérito das fake news, as
sumidades trajadas de preto não param de intrometer-se em assuntos
alheios. Passados seis anos de abusos, continuam convencidos de que,
para preservar o Estado de Direito, é preciso submeter a medonhas
sessões de tortura o que chamam de "Carta Magna". Com a soberba de
quem efetivamente acredita que salvou o Brasil dos fascistas de
extremíssima direita, seguem confiscando territórios pertencentes ao
Legislativo e ao Executivo. Neste fim de fevereiro, o STF resolveu
deliberar também sobre desavenças internacionais, expropriando uma área
até agora confiada ao governo federal.
Decidido a livrar a humanidade das redes sociais, obcecado pela
eternização da censura em escala planetária, faz uma semana que Moraes
declarou guerra ao grande satã americano. Assim, neste 24 de fevereiro,
também simulando proferir uma aula magna para calouros paulistas, passou
mais de uma hora mandando chumbo em qualquer coisa ou gente com sotaque
ianque. Ele é gerente da vara criminal semiclandestina que administra
mais de 2 mil casos, além de capataz da usina de sentenças
condenatórias, tornozeleiras eletrônicas e restrições sem pé nem cabeça.
Mas deixou de lado tais ocupações e mandou às favas temas que interessam
a futuros advogados para concentrar-se no alvo da vez. Transcrito sem
correções nem retoques, segue-se um dos melhores piores momentos do
bombardeio:
"As big techs não são enviadas de Deus, como alguns querem. Elas não
são neutras. São grupos econômicos que querem dominar a economia e a
política mundial, ignorando fronteiras, ignorando a soberania nacional
de cada um dos países, ignorando as legislações, pra aferir poder e
lucro. Democracia é um negócio... pras big techs... porque tudo pras big
techs é dinheiro, é um negócio. Democracia é um negócio. Assim como
vendemos carro, vamos vender candidatos."
Como sua comarca clandestina não abarca os Estados Unidos, o Primeiro
Carcereiro teve de engolir comentários irônicos de executivos de big
techs, críticas de jornalistas estrangeiros, contragolpes de deputados
republicanos e mensagens explícitas ou em código - todas pouco
animadoras - remetidas por autoridades do governo Trump. Nesta
quinta-feira, de volta a Brasília, Moraes treplicou com a leitura de um
discurso na sessão do STF. Se o idioma nacional foi poupado das pancadas
desferidas por improvisos do ministro, a História não escapou do pontapé
abaixo da linha da cintura. "Deixamos de ser colônia em 7 de setembro
de 1822", tropeçou Moraes ao declamar o que deveria ser o clímax do
palavrório. Merece zero com louvor no Enem. O Brasil deixou de ser
colônia em 16 de dezembro de 1815, quando D. João, ainda príncipe
regente, fez do Brasil um Reino Unido a Portugal e Algarves. A monarquia
brasileira nasceu sete anos antes do que imagina o orador.
Por ignorância ou piedade, nenhuma eminência corrigiu o erro bisonho.
Tampouco se comentou a indigente resposta do Itamaraty à nota de um
departamento do governo americano que não melhora a folha corrida do
ministro. Antes de enviada, a réplica foi examinada pelo presidente Lula
e por Moraes. Tais cuidados podem ser associados à constatação famosa
feita pelo decano Gilmar Mendes: Lula não estaria no Planalto se o STF
não fosse o que é. A notícia de que Moraes pode ser proibido de entrar
nos Estados Unidos foi igualmente abrandada por piadinhas pouco
inspiradas. "Se quiser passar lindas férias, pode ir para Carolina, no
Maranhão", sugeriu Flávio Dino. "Não vai sentir falta de outros
lugares com o mesmo nome." Moraes já está convidado para palestrar em
maio num seminário que o empresário João Doria vai promover em Nova
York. Dino precisa contar-lhe que entre as cidades maranhenses também
existe uma Nova Iorque.
"É falsa a ideia de que a autocontenção do STF é uma coisa boa, e o
ativismo, uma coisa ruim", disse Dino na PUC. "É falsa a ideia de
que o Supremo, quando se abstém de votar alguma coisa, fez o certo."
Para o ministro, quem contesta o ativismo do STF decerto mudaria de
ideia se conhecesse um dramático episódio ocorrido há quase 90 anos. Em
seguida, Dino gaguejou a sinopse incompreensível:
"Olhe o julgado do Supremo sobre a deportação... deportação de Olga
Benário. Uma cidadã alemã, é verdade, grávida de um bebê e que foi para
a Alemanha e morreu num campo de concentração. Ela buscou evitar essa
deportação onde? No STF. E o que foi que os meus colegas da época
disseram? Isso é ato político. Não é algo de importância. É certo
entregar uma mulher grávida para morrer no campo de concentração?"
Que se conte o caso como o caso foi. Casada com o líder comunista Luís
Carlos Prestes, a militante alemã Olga Benário engajou-se em novembro de
1935 na fracassada Intentona Comunista, concebida para derrubar o
governo de Getúlio Vargas. Presa semanas depois, estava grávida havia
sete meses quando a Suprema Corte, em setembro de 1936, rejeitou o
pedido de habeas corpus nº 26.155, protocolado pelo advogado Heitor Lima
em 3 de junho de 1936 e apreciado na sessão de 17 de junho. Com a
decisão, o tribunal aprovou a deportação abjeta - e a condenação à
morte. Olga foi assassinada em 1942, no campo de concentração de
Bernburg. Ali nascera em novembro de 1936 a filha Anita Leocádia,
localizada e devolvida à liberdade graças à tenacidade da avó paterna,
Leocádia Prestes.
Em 2022, a ministra Cármen Lúcia prometeu propor ao STF que se
desculpasse publicamente pelo que fez em 1936. Estava em vigor a
Constituição de 1934, e o Estado Novo só seria decretado um ano depois
da deportação. Num Brasil democrático, a Suprema Corte pecou por ação,
não por omissão. A decisão infame foi endossada pela maioria dos
ministros. É tarde para redesenhar a trajetória de Olga. Mas há neste
momento centenas de vidas a salvar. O destino de uma multidão de
brasileiros está nas mãos de 11 servidores públicos.
O STF deveria orientar-se pela sabedoria e pelo senso de justiça que
faltaram à avó Suprema. A ditadura do Judiciário é um pesadelo de curta
duração. A verdade não morre. E quem tem razão sempre vence.
Da redação Ponto Notícias l Augusto Nunes