O Sistema Único de Saúde (SUS) deve iniciar, ainda neste ano, a substituição gradual do teste citopatológico — amplamente conhecido como papanicolau — pelo exame molecular de DNA-HPV, como forma principal de rastreio para a detecção do papilomavírus humano. A nova diretriz estabelece que, nos casos em que não for identificado o vírus, o intervalo entre as coletas passará a ser de cinco anos, ampliando significativamente o tempo entre os exames de rotina. Apesar da mudança na metodologia, a faixa etária para realização do exame de rastreio em pacientes assintomáticas permanece a mesma: entre 25 e 49 anos.
Essa atualização faz parte de um novo conjunto de recomendações apresentado pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca), voltado ao diagnóstico mais eficaz do câncer do colo do útero. As diretrizes foram oficialmente divulgadas nesta quarta-feira (26) e têm como objetivo modernizar os métodos utilizados pelo sistema público, alinhando-se aos avanços científicos que apontam maior sensibilidade do exame de DNA-HPV para detectar infecções persistentes, fator de risco relevante para o desenvolvimento da doença.
O novo protocolo já recebeu parecer favorável da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) e da Comissão de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas. No momento, a proposta aguarda apenas a avaliação final por parte da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Ministério da Saúde para ser oficialmente implementada na rede pública.
O papilomavírus humano, conhecido pela sigla HPV, é apontado como o agente responsável por mais de 99% dos casos de câncer de colo do útero, uma das principais causas de mortalidade por câncer entre mulheres no Brasil. Atualmente, essa é a terceira neoplasia mais frequente entre a população feminina brasileira, com aproximadamente 17 mil novos diagnósticos a cada ano, segundo dados oficiais. O impacto da doença, embora prevenível, ainda é expressivo, sobretudo em regiões com menor acesso à informação, vacinação e exames de rastreamento.
A perspectiva, no entanto, é de transformação. Especialistas na área de saúde pública e oncologia acreditam que, com o avanço das campanhas de imunização contra o HPV e a implementação de programas organizados de rastreamento — como o novo protocolo baseado no exame de DNA-HPV — será possível erradicar o câncer do colo do útero nas próximas duas décadas. Essa estimativa se apoia em evidências que mostram a eficácia combinada da vacina e da detecção precoce na interrupção da cadeia de transmissão do vírus e na prevenção da evolução para lesões mais graves.
O caminho para esse cenário, entretanto, depende da continuidade e ampliação de políticas públicas de saúde, além do engajamento da população feminina em manter a regularidade dos exames preventivos e garantir a vacinação de meninas e meninos dentro da faixa etária recomendada. A expectativa de erradicação, antes vista como distante, agora se torna uma meta possível e concreta, desde que acompanhada de ações coordenadas e sustentáveis em todo o território nacional.
Desde 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a recomendar o teste molecular como exame primário para detecção do HPV, devido à sua superioridade em relação aos métodos tradicionais, especialmente no que diz respeito à redução de casos e mortes por câncer do colo do útero. A principal vantagem desse tipo de exame está na sua elevada sensibilidade, que permite detectar a presença do vírus com maior precisão e em estágios mais precoces da infecção.
Além da detecção mais eficiente, o exame molecular apresenta um diferencial importante: ele é capaz de identificar o subtipo específico do HPV presente no organismo da paciente. Isso tem impacto direto na conduta clínica, uma vez que nem todos os subtipos do vírus apresentam risco elevado. Apenas algumas variantes, como os tipos 16 e 18, estão fortemente associadas ao desenvolvimento de lesões precursoras de câncer e, portanto, demandam acompanhamento e intervenção diferenciados.
Com base nesses fatores, o uso do teste molecular tende a proporcionar um rastreamento mais eficaz e personalizado, ampliando as chances de prevenção e tratamento precoce. Ao identificar com precisão os casos de maior risco, o exame evita intervenções desnecessárias em pacientes com infecções transitórias e reforça a efetividade dos programas de saúde pública na luta contra o câncer do colo do útero.
O pesquisador Itamar Bento, que integra a Divisão de Detecção Precoce do Instituto Nacional de Câncer (Inca), ressalta que as características do teste molecular de DNA-HPV permitem ampliar com segurança o intervalo entre os exames de rastreamento. A precisão do método, segundo ele, justifica a mudança nas diretrizes, oferecendo maior confiabilidade aos resultados negativos e possibilitando uma abordagem mais eficiente no controle da doença.
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“O teste DNA-HPV tem um valor preditivo negativo muito forte, ou seja, se a pessoa tiver resultado negativo, a gente pode de fato confiar nesse resultado. E, conhecendo a história natural da doença, a evolução das lesões, é uma margem segura aguardar cinco anos para fazer um novo teste.”
A adoção do exame molecular de DNA-HPV no SUS não será eficaz isoladamente — ela precisa estar integrada a um modelo de rastreio organizado, conforme destaca o pesquisador do Inca. Nesse tipo de estratégia, cabe ao sistema de saúde identificar e convocar ativamente as pessoas dentro da faixa etária indicada, substituindo a lógica passiva em que os exames dependem da iniciativa individual da população. O objetivo é ampliar o alcance e garantir que todas as etapas do cuidado — da detecção ao tratamento — sejam cumpridas com eficiência.
Segundo o pesquisador da Divisão de Detecção Precoce do Inca, é fundamental assegurar que o processo inclua também a continuidade do atendimento nos casos em que houver necessidade de confirmação diagnóstica e tratamento das lesões. A estruturação desse modelo é vista como peça-chave para alcançar resultados expressivos na redução da incidência e mortalidade por câncer do colo do útero.
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“É necessário que a população alvo seja identificada e convocada ativamente e individualmente. E é preciso garantir que ela terá acesso à confirmação diagnóstica e ao tratamento das lesões havendo essa necessidade.”
O Ministério da Saúde deve adotar, no Sistema Único de Saúde, o exame molecular de DNA-HPV como método primário para rastreio do câncer do colo do útero, substituindo gradualmente o papanicolau. A mudança amplia o intervalo entre os testes para cinco anos nos casos negativos e inclui inovações como a autocoleta e diretrizes para pessoas transgênero, não binárias e intersexuais. Especialistas destacam a maior sensibilidade do novo exame e a importância do rastreamento organizado para ampliar a cobertura e garantir tratamento adequado.
Dados recentes do Sistema de Informação do Câncer revelam desafios importantes para a efetividade do rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil. Entre os anos de 2021 e 2023, apenas três estados alcançaram uma cobertura próxima de 50% do público-alvo para a realização do exame papanicolau, que até então era o principal método utilizado pelo SUS. Nos demais estados, os índices ficaram abaixo desse percentual, o que compromete a capacidade de prevenção e detecção precoce da doença. Em alguns casos, sequer há dados completos disponíveis para análise, dificultando a avaliação real do cenário.
Outro ponto crítico está relacionado ao tempo de entrega dos resultados. Em estados como Acre, Maranhão e Mato Grosso, a maioria dos laudos foi entregue com mais de 30 dias de espera, o que compromete o fluxo ideal de atendimento. Essa demora impacta diretamente na realização de exames confirmatórios e na viabilização do tratamento dentro do prazo legal de até 60 dias após o diagnóstico, conforme determina a legislação brasileira. A lentidão nos processos compromete a eficácia do rastreio e representa um obstáculo à redução da mortalidade pelo câncer do colo do útero.
Diante das falhas observadas na cobertura e na agilidade dos exames, o modelo de rastreamento organizado propõe uma linha de conduta estruturada, com critérios bem definidos para cada situação clínica. O pesquisador Itamar Bento, do Inca, esclarece que esse modelo busca garantir respostas rápidas e apropriadas conforme o resultado do teste de DNA-HPV, otimizando os recursos do sistema de saúde e aumentando as chances de detecção precoce e tratamento eficaz.
Nesse processo, se o exame de DNA-HPV não detectar a presença do vírus, a paciente poderá repetir o teste apenas após cinco anos, graças à alta confiabilidade do resultado negativo. No entanto, se for identificado um subtipo oncogênico do HPV — como os tipos 16 e 18, que estão associados a cerca de 70% das lesões precursoras do câncer do colo do útero —, a paciente será encaminhada diretamente para uma colposcopia. Caso o exame colposcópico confirme a presença de alterações cervicais, a paciente seguirá para condutas clínicas específicas, conforme o tipo e a gravidade das lesões.
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“A pessoa faz um teste de DNA-HPV e, se não foi detectado, ela só vai repetir o exame após 5 anos. Se foi detectado um tipo oncogênico, como o 16 e o 18, que são responsáveis por 70% das lesões precursoras de câncer, ela vai ser encaminhada diretamente à colposcopia. Se a colposcopia identificar uma doença cervical, vai seguir para condutas específicas.”
Além da substituição gradual do papanicolau pelo exame molecular de DNA-HPV, as novas diretrizes para o rastreamento do câncer do colo do útero trazem outras inovações que visam ampliar o acesso e tornar o processo mais inclusivo. Uma das principais mudanças é a possibilidade da autocoleta do material para o teste, medida voltada especialmente para populações que enfrentam barreiras geográficas, culturais ou pessoais para a realização do exame por um profissional de saúde. Essa alternativa pode ser determinante para ampliar a cobertura entre mulheres que vivem em regiões remotas ou que têm resistência ao exame ginecológico tradicional.
Outra novidade relevante nas diretrizes é a inclusão de orientações específicas para o atendimento de pessoas transgênero, não binárias e intersexuais. O reconhecimento da diversidade de identidades de gênero amplia o escopo do cuidado e garante que todas as pessoas com colo do útero sejam contempladas nas ações de prevenção, independentemente da identidade de gênero. Essas mudanças sinalizam um avanço no compromisso com a equidade no sistema público de saúde, promovendo mais acesso, respeito e efetividade no enfrentamento do câncer do colo do útero.
Da redação Ponto Notícias l Agência Brasil